A Regulação das Plataformas IV
'Arautos da fraternidade' | O cânone do discurso não permitido | À deriva num limbo internético-platafórmico | 'A gente vai colher o que a gente plantou' | O Artilheiro Musical
[Antes.]
[A Regulação das Plataformas] Atordoados pela percepção de que fomos ultrapassados pelo algoritmo, sugerimos confiar boa parte da tarefa de coibir práticas e ações odiosas e repulsivas ao… algoritmo.
[A Regulação das Plataformas II] É abordagem analógica e linear para problema digital e exponencial. Imersos numa confusão entre liberdade e responsabilidade, as big techs estariam legitimadas como publishers invertidos, e com a chancela do Estado.
[A Regulação das Plataformas III] Qual a força de trabalho para a moderação não algorítmica do que vai publicado, segundo dizem, num decadente Twitter? 20 ou 40 milhões de contas no país. WhatsApp: 150 milhões. Telegram: 40 milhões. Facebook: mais de 100 milhões. Escala populacional, não de amostragem estatística.
[Sequência.]
Em vista da proferida intenção de “evitar a algoritmização da sociedade”, seria um contrassenso atribuir ao algoritmo e à inteligência artificial a fiscalização e, mais, a condução do ambiente online. Para a civilização, pode ser tarde para reverter (por bem, em paz) esse aprendido comportamento virtual, irrefletido desaprendizado do real. Reflexo de impulsos inconsequentes, incontido hábito de estímulo e resposta. E que se transfere para a concretude do mundo físico com intensidade capital. Sem deixar de atualizar, nesse transbordar, os sete pecados assim classificados. Ao reputar ao decaído a criação das ferramentas de nossa própria decadência, em que categoria se enquadraria a virtude autoproclamada de uma voz que diz “nós somos arautos da fraternidade”. Aparentando combater não o mal, mas o semelhante que o pratica.
Se pode ser verdade que a solução para a atual desordem (muito mais que) informacional passa por algum retorno a modos de propagação orgânica de informação, não deve ser verdade que passe por combater linearmente algo que se ramifica exponencialmente. Ora, parece assim explicada a apelação ao automatismo recôndito dos códigos-fonte para solucionar um problema cuja causa majoritária é… o automatismo recôndito dos códigos-fonte. Aqui, não somente o parâmetro se mostra errado; a lógica também parece estar. No instante em que estiver sacramentado o cânone do discurso não permitido, a ausência de nuance na linguagem estará elevada à norma de conduta. Possível consequência, o desaparecimento contíguo do pensamento dos indivíduos.
Garantida a não responsabilidade direta e contínua dos Poderes constituídos sobre o mundo digital, conforme prevê a legislação em debate, garantiria-se a transferência da responsabilidade sobre o que pode ou não circular online ao inidentificável e inexpugnável Sistema. Aos erroneamente bloqueados, restaria o baque sem eco de sucumbir à deriva num limbo internético-platafórmico. Imaterial circunstância em que o veto antecipado não deverá impedir uma publicação; e, sim, que permaneça publicada — que dizer de ser publicizada. Preventiva reação a possível ato ilícito assim não acontecido, a justificar a indevida exclusão dos justos em nome da devida punição aos injustos.
Para os nem de todo puros, nem de todo impuros, restaria a segurança ilusória de um superior mecanismo de restituição. Ao qual seria necessário convencer, para a concessão da remissão almejada, do não cometimento de falta alguma. Sem materialidade na ferramenta, sem instituições concretas à disposição, sem pessoas físicas (literalmente) a quem recorrer, imagine-se a celeridade e a prontidão desse prometido “Fale Conosco” restaurador face ao que for excluído por uma “moderação ativa de conteúdos”, sustentada pelos mandamentos de uma “proatividade algorítmica”. É tanta a discrepância entre o modo de funcionamento de aplicativos e plataformas e as propostas de regulação apresentadas — que o impreterível reordenamento da internet pode acabar na desconexão de um violento beco sem saída, e de vez. “A gente vai colher o que a gente plantou. E nós estamos colhendo o que a gente plantou.”
[Segue.]
Algo de bastidor
Saiu um pouco da pauta a regulação das redes. Haja negociação de bastidor.
| Destaques Não Aleatórios |
“Deputados bolsonaristas pedem que STF censure Folha e grupo Globo. Parlamentares ligados ao ex-presidente falam em manipulação da opinião pública a favor do PL das Fake News.” | Folha
“Lula não é mais Lula, diz revista francesa. Artigo da ‘L’Express’ cita encontro com Maduro e desencontro com Zelensky para dizer que ‘mágica’ diplomática de petista não funciona mais.” | Poder360
“WhatsApp anuncia ‘Canais’, recurso de disparo em massa de mensagens. Ainda não há informações sobre o seu lançamento no Brasil. A ferramenta é bem parecida com o rival Telegram, em que enviar mensagens para um número ilimitado de usuários já é possível.” | Estadão
“O próprio Alexandre de Moraes, que determinou a quebra do sigilo das imagens do GSI, é reticente em liberar o acesso a diversos inquéritos sob sua relatoria sobre fake news contra o STF, ameaças antidemocráticas e os atos do 8 de Janeiro. Parece que cada autoridade considera que, no seu caso específico, deve valer a exceção do sigilo, e não a regra geral da transparência.” | Estadão
“Era inevitável que acontecesse. Num roteiro que lembra a trajetória de Simão Bacamarte, o fictício psiquiatra machadiano que conclui que sua ‘normalidade’ era tão anormal que deveria confiná-lo ao hospício, o movimento conservador religioso que deu início a uma onda de banimento de livros de bibliotecas escolares dos EUA resolveu pôr a Bíblia na lista negra.” Hélio Schwartsman | Folha
“Tal é o êxtase do desnudamento digital: o imbecil exibe-se com descaramento, enquanto o deslumbre da tecnosfera o prende no loop de zeramento do caráter, na máscara sem miolos. Moralmente nu, abre-se à liberdade egóica de odiar, ofender, destruir. E, atraído pela sombra perdida de si mesmo, vota nos inomináveis, não por pacto deliberado com o mal, mas por colapso humano.” Muniz Sodré | Folha
“Meta, dona do Facebook, está perto de lançar rede social que vai competir com o Twitter. Vendo uma oportunidade de mercado desde que a rede social vizinha foi comprada por Elon Musk, a companhia de Zuckerberg busca responder a um desejo de figuras públicas que buscam uma plataforma mais sensata em termos de gestão. Na lista de usuários alvos, há os nomes de Dalai Lama e Oprah Winfrey.” | O Globo
“Instagram promoveu pornografia infantil em sua plataforma, mostra relatório. Os compradores e vendedores desses materiais se comunicavam por meio do recurso de mensagens diretas — os algoritmos de recomendação do Instagram tornavam os anúncios dos conteúdos mais eficazes … . A empresa disse que desmantelou 27 redes abusivas entre 2020 e 2022, e em janeiro desativou mais de 490 mil contas por violar suas políticas de segurança infantil.” | The Washington Post/Estadão
“É a irresponsabilidade do descarado e lucrativo anonimato. Sobre este ponto o PL silencia. … Ouso afirmar que as fake news seriam mais diretamente combatidas caso fosse obrigatória a identificação séria dos usuários de redes sociais, de e-mails, etc. Sem a correspondente responsabilização por excessos, a ilimitada liberdade de expressão é uma arma da irresponsabilidade. Um direito absoluto. Um sobredireito que subjuga todos os demais. Mas a responsabilização obviamente depende da identificação. Daí porque, como manda a Constituição federal: ‘É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato’.” Afranio Affonso Ferreira Neto | Estadão
“O Tucker on Twitter foi compartilhado pelo publisher Elon Musk, que voltou a dizer como ‘seria ótimo ter programas de todas as partes do espectro político nesta plataforma’. O NYT noticiou a estreia de forma contida. Foi mais crítico ao cobrir a entrevista feita um dia antes pelo próprio Musk com o herdeiro político da família Kennedy, adversário de Joe Biden no Partido Democrata. No título, ‘Robert Kennedy Jr., com Musk, promove ideias de direita e desinformação’. Logo abaixo, o jornal reconhece que ele tem ‘números surpreendentemente altos, consistentemente de 20% nas primárias’. Em duas horas, Kennedy Jr. afirmou, por exemplo, sobre a China: ‘Devemos competir com eles numa plataforma econômica, não militar. … Os chineses têm se saído muito melhor do que nós porque têm projetado poder econômico no exterior, e o mundo gosta disso. Nós pensamos que o mundo está do nosso lado, mas ele não está.’” Nelson de Sá | Folha
“Uma das características da censura líquida é ser, justamente, ‘democrática’, isto é, operar dentro do Estado de Direito e suas instituições. Aliás, o Estado de Direito e mercado são parceiros diretos no caráter líquido da nova forma de censura no século 21. … Qualquer um ou qualquer instituição poderá denunciar qualquer frase, texto, vídeo, que julgar inadequado. O poder judiciário poderá acatar a denúncia na direta proporção de que seu agente concorde com a denúncia, e você, cidadão comum, sem poder institucional algum, dependerá do que pensa, absoluto, o juiz que decidirá se você ainda terá vida profissional, econômica, pública ou mesmo familiar. … Uma marca da censura líquida é que ela pode destruir a sua vida sem prender você ou necessariamente ‘proibir’ você diretamente de falar ou escrever, mas sim de pensar. A pura ameaça já tem o efeito do censor. Aquilo que nos regimes totalitários ocorria numa escala menor, mais lenta e localizável facilmente, no século 21 acontece em escala geométrica, tecnológica, acelerada cada vez mais, e difusa. Pode vir de qualquer lado, a qualquer momento.” Luiz Felipe Pondé | Folha
“Esta [aquela] Folha publicou um editorial sobre o caso Vini Jr. E de lá extraio este trecho: ‘Os organizadores e atores do futebol não deveriam aguardar a ação das autoridades de Estado para tomar providências’. É isso. Fala-se de atos que são considerados crimes também na Espanha. O mundo cobrou providências do governo, do Valência, da Fifa e da La Liga, entidade que organiza o campeonato. Os patrocinadores foram confrontados. Entende-se que todos esses entes respondem pelo espetáculo e têm o inarredável dever do cuidado. Multiplicaram-se juízos de reprovação à omissão desses agentes privados, que vinham convivendo com a delinquência, como a dizer: ‘Não temos como controlar o que as pessoas dizem nos estádios’. Até parecia que haviam lido o artigo 19 do nosso Marco Civil da Internet … . Alguém me prove que clube, La Liga, patrocinadores e Fifa não estão para o futebol como os ‘provedores de aplicações’ estão para as plataformas e redes, e os torcedores, para o ‘conteúdo gerado por terceiros’. Não faltam, nessa relação, nem os patrocinadores, que assumem a forma de anunciantes. Assim, junto com o editorial, penso que não se deve ‘aguardar a ação das autoridades do Estado’ —ou a ‘ordem judicial específica’— para que os criminosos sejam banidos dos estádios e, digo eu, das redes, sob pena da responsabilização civil.” Reinaldo Azevedo | Folha
Do
“Berlusconi percebeu que todos pensavam pequeno. Que pouco se podia ganhar com adeptos no estádio em comparação com audiências nacionais (ou globais) e acordos de publicidade inerentes a essa exposição. A pensar nisso potenciou ele o Mundialito de Clubes que decorreu nos anos seguintes em Milão, uma especie de torneio de pré-época que antecipou aqueles que hoje se disputam nos Estados Unidos ou Ásia. Quando o Milan, na ruina depois de uma despromoção administrativo por estar envolvido no Calciopoli, apareceu no seu caminho, não olhou para trás. Comprou o clube e utilizou-o como plataforma para as suas ideias. … Paralelamente, Berlusconi foi o primeiro dono de um clube a acreditar na ideia dos super-planteis, tão de moda hoje em dia. … Mas Berlusconi foi ainda mais longe quando transformou o seu clube num projecto de marketing que acabou para o catapultar para a vida politica, uma ideia que inspirou o sportwashing dos magnates russos e das ditaduras árabes nos anos seguintes, países com os quais sempre manteve excelentes relações enquanto político.”
Na série “Sonoras Que Condensam a Vida”
“O fracasso às vezes está em continuar. Muitas vezes a longevidade não é sinônimo de êxito.”
Samuel Rosa, vocalista do Skank, sobre o fim da banda; meados de março, por aí
O Artilheiro Musical
Não pede música, faz
“Como eu vou ter privacidade, se você priva a cidade.”
Matheus & Kauan; Privacidade
Last but not least
O chato do Português
“Notório é ex-BBB, notável foi George Orwell, autor de ‘1984’, de onde vem o Big Brother.”
Demóstenes Torres, ex-senador e advogado; final de março, por aí