O Fim da Propriedade
Sequer aluguel | Coisas possíveis de acontecer dois | Serão prováveis? | A situação é legítima | Habitualidade factual | O contrário de 'El Niño' | Pensei que era bijuteria
A compra que não é sequer um aluguel. A ideia já existe. Foi até mesmo, como se dizia antigamente, registrada em cartório. Ou melhor, patenteada. É o que informa relato publicado no jornal sobre um projeto da Ford norte-americana.
Qual a sacada dos caras? Programar carros autônomos para sair de circulação em caso de atraso ou não pagamento. Mais cativante é a benemerência e a tolerância da coisa toda. Retornar para a revendedora não é a primeira ação do veículo. Antes de chegar a tanto, o carro, bem-mandado, volta para casa.
“O sistema, ativado à distância, permite ao carro ‘abandonar o dono’, e, com isso, dirigir-se por conta própria até a casa do proprietário. A depender da situação da dívida, o carro pode voltar para a concessionária sozinho, até que se paguem as parcelas.”
E se a garagem estiver fechada? Como faria o carro para entrar. A não ser que parasse na rua. E se mesmo com tal reprimenda, ser deixado para trás pelo próprio automóvel, o cidadão não resolver o débito? Como sairia o carro da garagem na hora de abandonar o dono de vez. A não ser que dormisse na rua.
Os caras pensaram nisso. Alguma barreira física impede o automóvel de se mover sozinho? Bastaria bloquear, remotamente, a partida do motor. Não liga, e pronto. Mais radical, trancar as portas. O dono não conseguiria nem entrar no carro. Essas medidas, contudo, somente seriam empregadas se o proprietário ignorasse outros avisos prévios de que algo não ia bem.
“E podem ser, embora irritantes, tão simples quanto desativar certas funções do veículo. De início, recursos de comodidade tais como o ar-condicionado, controle de cruzeiro, bancos elétricos, vidros elétricos ou o rádio poderiam ser desligados. Outro método é descrito como a reprodução de sons incômodos e incessantes nos alto-falantes.”
Mantendo-se a insustentabilidade da situação, sem possibilidade de acerto financeiro com a concessionária, só então se entraria na crepuscular zona de um remoto abandono automotivo. Que poderia se dar via mero deslocamento autônomo do carro até algum ponto, na rua, onde o guincho pudesse atuar com tranquilidade e sem risco de rixa com o dono (ex-dono).
Peraí. Guincho? Sim. O projeto patenteado contempla, além dos autônomos, veículos semiautônomos ou apenas conectados à rede. O que possibilitaria, entre outras restrições, o trancamento das portas e o bloqueio do motor de virtualmente qualquer modelo futuro (ou no futuro). Não exigindo, talvez, a instalação de nenhum equipamento extra.
“A primeira coisa a saber é que se seu veículo estiver, de alguma maneira, conectado à internet, esse sistema poderia, em teoria, agir sobre ele. … Em suma, se seu carro possuir uma central de infotainment configurada para receber atualizações pela rede sem fio, isso [a programação de perda de controle do carro e do próprio carro] poderia provavelmente operar sem modificações concretas [no computador do veículo].”
Logística e tecnicalidades à parte, parece algo meio comunista, não? Você acha que comprou, a loja diz que vendeu. Mas o produto, na verdade, não é seu. Pelo menos, até terminar de pagar. Peraí. Isso já não funciona assim?
Ainda que as big techs digam não ter nada com isso, de forma muito lucrativa, pouco autônoma e bem algorítmica, circulam na rede leituras sobre possível similaridade entre capitalismo e comunismo: a tendência ao monopólio. Seria outra semelhança, deve haver quem o saiba, o fim da propriedade?
O vivente vai até o comércio comprar alguma coisa. Oferecem-lhe, sem juros, o parcelamento. Sai da loja satisfeito, sentindo-se o mais novo proprietário daquele artigo, qualquer artigo. Certo, entretanto, de vir a ser confiscado se falhar o pagamento devido. Procedimento seamless, vibraria o rooftop.
A se pensar no carro autônomo que deixa o proprietário na mão, é só questão de chamar a coisa pelo nome. Pagar pelo uso, não pela posse. Apesar da embalagem modernosa, isso também já existe. Há tempos. É conhecido, ora, como aluguel. A possível novidade? Toda compra virar aluguel. Ou nem isso.
A diferença, se alguma houver, estaria em tornar desnecessários os trâmites legais e burocráticos para o confisco do item não integralmente pago. Sequer confisco seria, com a vantagem de os automóveis se dirigirem sozinhos para a locadora, quer dizer, revendedora de origem em caso de inadimplência.
Nem sempre. Para a montadora, pode não valer a pena tomar o carro de volta. Comunistas e econômicos, os caras pensaram nisso as well. Dívida alta? Direto para a demolição. “Aliás, caso o valor de recompra não seja o suficiente para cobrir a dívida, o carro pode até ir por conta própria para um ferro-velho.”
Exceto pelo fato de um automóvel poder se mover sozinho, sem demandar intermediários para deixar de estar sob a posse de quem quer que seja, não haveria restrições à aplicação generalizada da ideia. Como um novo princípio, capitalista-comunista ou comunista-capitalista. De comum e imposto acordo, claro. Válido para todo e qualquer produto, todo e qualquer vivente (ou quase).
Seria suficiente, para a verificação de eventual não pagamento, alguma forma de identificação digital. Conectado à rede, ao estabelecimento comercial e ao sistema bancário, não haveria escapatória. Sumária e robotizada, drones e os próprios self-driving cars auxiliariam na coleta dos itens.
Cientes da rigidez do esquema punitivo comunista-capitalista e capitalista-comunista, conscientes da própria inadimplência e sabedores da inutilidade de qualquer protesto, os proprietários-locatários não ofereceriam resistência. Nem mesmo dentro de casa. Levariam de bom grado, com raras exceções, os devidos objetos até o lado de fora da porta.
Para bens imóveis não quitados, seria mais simples e menos trabalhoso (ou nem tanto). A dívida de jure viraria aluguel de facto, ou algo assim, e a posse retornaria ao vendedor; ou ao Estado (seja qual for). Mediante módicas e inacabáveis prestações, reajustáveis, o vivente poderia, com os seus, caso habitação fosse, com ou sem garagem, seguir vivendo na humilde residência.
Enquanto leituras desmesuradas extrapolam a reflexão para a equivalência, hipotética, entre o bloqueio de acesso a um automóvel e o bloqueio de acesso a um perfil em rede social, a tolerância e a benemerência do projeto se fazem evidentes nas exceções previstas, por exemplo, em casos de urgência.
“De fato, a patente é explícita ao observar que, se alguém estiver sofrendo algo como um ataque cardíaco — a situação de um ataque cardíaco é citada diversas vezes no documento —, então o carro poderia ser desbloqueado. E diz que a câmera de bordo do veículo poderia ser utilizada em conjunto com uma ‘rede neural’ para determinar se a situação de emergência é legítima.”
Futura e presentemente assim bem cuidados, clarifica-se a despreocupação de comunistas-capitalistas tardios e capitalistas-comunistas de vanguarda com qualquer desguarnecer. Fica a possibilidade de sermos todos inquilinos não autônomos de uma mesma rede, mais que neural, nada remota e ubíqua. Quem para determinar se a situação de emergência é legítima.
Algo de bastidor
Em São Paulo, a encosta encharcada escorre, a lama leva dezenas de pessoas; desaba o teto, piso do andar de cima, estacionamento vem abaixo, veículos junto; a enxurrada arrasta o carro da senhora, a senhora saiu de casa para comprar pão, não voltou. Não só em São Paulo, anormal habitualidade factual.
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“Poder público? A rica Prefeitura de São Sebastião, abastecida pelos royalties do petróleo e pelas rendas do porto, aliou-se à especulação imobiliária, autorizando ou regularizando as extensões ilegais das superfícies urbanizadas. Na febre da pilhagem, esqueceram-se das infraestruturas públicas e dos serviços básicos. Inexistem postos policiais e postos de saúde na maioria dos bairros/praias. As redes de coleta de esgotos circunscrevem-se a áreas mínimas: praias célebres como Una, Sahy, Juquehy, Boiçucanga e Toque-Toque Grande são classificadas como impróprias para banho em 25% das semanas.” Demétrio Magnoli | Folha
“Elite urbana se identifica mais do que gostaria com vinicultores envolvidos na contratação de trabalho análogo à escravidão. O que causa certo espanto é a intensidade da repercussão deste caso em particular. E, em especial, como reverbera numa certa classe média meio intelectualizada, meio engajada.” Marcos Nogueira | Folha
“O lulismo que ultrapassa as fronteiras do governo parece um fenômeno datado e circunscrito aos seus dois primeiros mandatos. Lula não precisou dos moderados apenas para ganhar a eleição. Ele precisa deles para governar. … Na prática, porém, não é a frente ampla que tem movido o governo, mas a pressa de Lula.” Maria Cristina Fernandes | Valor
“Em meio ao espetáculo de bajulação a Lula, ao qual assistimos no armazém de secos e molhados em que se transformou parte importante da imprensa brasileira (se é que foi transformação), os fatos vão se impondo e só nos resta ir precificando a fatura a ser paga lá adiante.” Mario Sabino | Metrópoles
“Dizem hoje: mas o teto de gastos não funciona, tanto que já foi furado muitas vezes. É como furar o cano e depois dizer que não presta porque tem muitos vazamentos.” Carlos Alberto Sardenberg | O Globo
“Pode-se dar ao artigo 142 qualquer redação e ainda assim o regime democrático poderá ser ameaçado por golpes militares, mas jamais haverá golpe sem a participação e o estímulo das vivandeiras civis.” Elio Gaspari | Folha
“Ao contrário do marido, Michelle tornou pública sua decisão de se vacinar contra a Covid nos Estados Unidos em 2021. Além disso, o estilo empregado em suas intervenções públicas contrasta radicalmente com a beligerância do capitão reformado.” Camila Rocha | Folha
“Com a negativa de Michelle, Bolsonaro fica em situação pior. Na verdade, Bolsonaro empenhou-se em liberar as joias. A pergunta que não quer calar é se iria Bolsonaro repassá-las à esposa Michelle.” Wálter Maierovitch | UOL
“O fato serve para mostrar ainda que a burocracia, por si só, não é um problema. É o excesso dela e a utilização sem razões claras que atrapalham as instituições e o País.” Adriana Fernandes | Estadão
“Muitos intelectuais pós-modernos brincaram ao longo das últimas décadas com ideias como tudo é narrativa, pós-verdade, desconstrução, sócio-construtivismo de tudo que existe. Agora gemem como criancinhas.” Luiz Felipe Pondé | Folha
“O que são redes neurais? Redes neurais tentam emular o cérebro humano, combinando ciência da computação e estatística para resolver problemas habituais no campo da Inteligência Artificial.” | IBM
“A inovação determinante para a evolução da IA nas duas últimas décadas foi uma técnica conhecida como ‘rede neural’. Por meio dela, os sistemas podem ser treinados com quantidades enormes de exemplos e aperfeiçoam suas respostas aos desafios. É como se as máquinas pudessem aprender.” | O Globo
“E esse é outro ponto em que o governo brasileiro vem falhando. Parece mais preocupado com reverter a precarização promovida pelo uso de tecnologias do que com o futuro do mercado de trabalho em um país movido por empregos informais e de baixa formação.” Celso Ming | Estadão
“Carros da Ford voltarão sozinhos para a loja se o dono deixar de pagar. Patente registrada pela Ford permite que veículos autônomos ‘abandonem’ seus donos em caso de inadimplência e retornem para a concessionária.” | Jornal do Carro
Do
“O nome do fenômeno climático que hoje atrai interesse global começou com pescadores peruanos do século 19, para se referir a uma corrente marítima. Eles observavam que, em intervalos regulares que se repetiam a cada poucos anos, geralmente na época do Natal, as águas que chegavam à costa do Pacífico ficavam mais quentes. Era a corriente de El Niño, batizada em referência ao menino Jesus que ‘nascia’ próximo daquele período. … Já ‘La Niña’ foi nomeada mais tarde para diferenciar a fase oposta do fenômeno, mas ‘equivalente’ à outra – por algum tempo, houve discussão se o contrário de ‘El Niño’ não deveria ser ‘El Viejo’, inclusive para evitar conotações sexistas, mas o que pegou mesmo foi ‘a menina’.” |
Na série “Sonoras Que Condensam a Vida”
“Somos apenas um país cindido, sem uma convicção básica que seja em torno de uma agenda modernizadora.”
Fernando Schüler, cientista político; final de fevereiro, por aí
O Artilheiro Musical
Não pede música, faz
“Pensei que era uma joia rara.”
Bruno & Marrone; Bijuteria
Last but not least
O chato do Português
“Estou morando de aluguel.”
Michelle Bolsonaro, ex-primeira-dama; meados de março, por aí