Bom era quando a gente se sentava para ver a retrospectiva do ano na TV.
Mentira. Ninguém assistia. Mas só a ideia de que havia alguém tomando conta das coisas para nós — que coisa boa.
Ou será que alguém assistia? Talvez fosse mais fácil alguém contar que viu o especial do Roberto Carlos do que a retrospectiva.
Só de ver o comercial, a propaganda, a chamada no intervalo — já era bom, e o suficiente. Espera. Chamada do Roberto Carlos ou da retrospectiva?
No fundo, não importa. O que importa é que a gente sabia que no ano que vem seria mais ou menos a mesma coisa.
Cenas impactantes. Chuva. Fogo. Algum movimento bélico. Uns tanques, uns aviões de guerra. Alguma nova tecnologia. Alguma história que cativara corações e mentes mundo afora.
Detalhes tão pequenos, tantas emoções. O mundo era mais simples.
Mentira. O mundo não era mais simples. Era talvez — certamente — mais bruto do que está hoje. Ou será que isso é mentira também?
Na aparência, certamente hoje menos bruto. Talvez em alguns costumes. Agora, e na essência?
Uma fala macia e alegadamente inclusiva não é necessariamente delicada e tolerante. A brutalidade disfarçada pode ser bem mais violenta que uma rudeza escancarada.
Excludente em enviesada boa intenção? Será que isso aparece na retrospectiva? Não precisa, basta querer ver.
O mundo talvez parecesse, de fato, um pouco mais simples. O que havia, contudo, era a sensação de que alguém tomava conta de tudo para nós.
Ainda há. Não a sensação. Alguém tomando conta. Provavelmente, mais do que você imagina.
A questão é que passamos a achar que não precisamos mais tomar conta de nada, ao que parece, além do que é nosso (e às vezes nem disso).
Que o outro é mais um entrave — para a supremacia de um modo particular de pensar e agir — do que um semelhante. Que o todo é menor que a soma das partes.
Tudo mentira. Mas aí não há jeito: complica. E diga você nisso o que é nosso, é seu.
Que venha 2022. Mais ameno, feliz, próspero e pleno em generalidade, alguma que seja. Antes que, questão de tempo, de volta a realidade traga todos nós — de chofre, numa talagada, brutal e simplesmente.
Para depois muito nos impressionarmos quando passarem na retrospectiva essas futuras inverdades.
Algo de bastidor
Na metrópole, a inesperada e incomum e intensa calmaria entre o 24 e o 31, aparentemente muito mais calma do que em outros anos, reforça o esperançoso pensar e sentir de que nem tudo está perdido: o cansaço é de todos e é tão grande que o que todos parecem mais querer, por mais que muito se ouça ainda o contrário, é fazer as pazes com a vida em comum.
L.O.V. Leia Ouça Veja
De longe, a melhor retrospectiva do ano: “As 10 palavras mais pesquisadas em 2021”. Num dicionário, não no Google.
Demétrio Magnoli, na Folha: “No passado recente, a imprensa filtrava os caroços da mentira bruta. Hoje, operado por correntes extremistas, o megafone das redes sociais amplifica a desinformação.”
Diogo Mainardi, na Crusoé: “A ditadura militar mandava recolher os jornais diretamente nas bancas; o Google, a única banca de jornais que sobrou, manda exibir determinadas notícias e cassa todas as outras.”
Playlist Condizente 52 21
Transe Forró Funk — Marysa Alfaia, Fausto Fawcett
“Força da cidade que invade a consciência.”
Samba do Grande Amor — Chico Buarque
“Mentira.”
Diariamente — Marisa Monte
“Para todas as coisas, dicionário.”
Faxineira — Nei Lisboa
“Fascinante.”
Kátia Flávia, a Godiva do Irajá — Fernanda Abreu
“Provocante.”
Na série “Sonoras que Condensam a Vida”
“Yes, we live in the age of data, and unfortunately data can be presented in a way to prove just about anything, to the point where facts no longer seem to exist.”
Bob Lefsetz, o camarada que melhor descreve o que vem se passando com a media, em mais uma de pôster; segundo consta, sempre sem paywall
Last but not least
O chato do Português
“Ao ser eliminada do Big Brother Brasil, Karol Conká disse que não havia controlado a sua ‘animosidade’. Pelo volume de pesquisas, concluímos que o público ouviu limosidade.”
Dicio, Dicionário Online de Português, na lista das palavras do ano