Mesmo que seja pela boa índole da imensa maioria que a coisa toda não se rompa de vez, é como se houvesse uma lacuna, uma fenda, um aprofundamento nas bases do asfalto por onde transita nossa conduta pública.
Não é preciso procurar muito para ver: a ação de condôminos em áreas comuns de estruturas de habitação coletiva basta como exemplo, como simplório retrato de uma sociedade, ou de parte dela.
A sutil descortesia cotidiana, o bruto descarte dos resíduos, o destrato com os que mantêm habitável o ambiente — funcionários a abrir e fechar portões para residentes desejosamente impedidos de, por conta própria, entrar ou sair do lugar onde vivem.
Na rua, entre sorrisos e toques no ombro (ainda que reduzidos pela espraiada irritação e pelas exigências sanitárias), as inofensivas dobras na retidão, as indiferentes burlas no considerar do próximo, o inócuo agir em vista do exclusivo benefício particular.
Em um país aberto ao meio, parecem vir mais à tona tais desvios éticos, se é que poderiam ser assim tão gravemente classificados — pois também parecem às vezes benquistos, enaltecidos, quase como se compusessem significativa parte daquilo que somos.
Reduzidos em alcance e diminutos em efeito, não são menos ofensivos ou distintos de ações que, em nossos representantes institucionais, condenamos — ou nem mais condenamos, a não ser quando voltadas a interesse particular apartado do nosso.
Ingênua e perniciosa indulgência, rachadura moral que transborda sem inundar. Algo nas profundezas da nação, entretanto, deve restar encharcado dessa cotidiana desfaçatez, nada ameno costume, desabonadora seiva da qual parecemos hoje como nunca embebidos.
Nunca a confundir com a irreverência responsável, o atalho construtivo, a astúcia bem empenhada, o jogo de cintura produtivo, com nossa brasileira e única criatividade. Nestes tristes tempos que atravessam os trópicos, tão descaracterizadas qualidades.
Isso enquanto há mais de uma década, por baixo, ganha estrutura no Brasil a opacidade de uma burocracia casmurra, enganosamente libertadora, calorosamente autoritária. Mais que aparelho governamental, modo de pensamento — de um lado a outro.
E recapeado pelo centro, claro, essencial. Ainda assim, tal mescla de autoritarismo escamoteado com liberdade excludente pode levar a rompimento que, se não definitivo, como sói aqui acontecer, fará verter cada vez mais agressivos sumos. Em que velho buraco cairemos.
Algo de bastidor
Talvez mais alarmante seja observar graves decisões geopolíticas sendo tomadas a partir de lógica que parece obedecer a demandas de permanência nos trending topics — é isso, ou o desaparecimento da pauta. Futuros e reais riscos, esses perdem relevância. O fervor das redes como que regula o jogo.
L.O.V. Leia Ouça Veja
“Uma recessão está chegando. Em um esforço para punir a Rússia, os EUA e a UE tentam reduzir a demanda por petróleo e gás natural da Rússia. … O resultado tem sido mais dinheiro para a Rússia, o rublo em ascensão e preços mais altos para a energia em toda a região. Como resultado, a UE está recorrendo à queima de mais carvão para a energia. Na ironia das ironias, nem mesmo os Verdes alemães reclamam de mais uso de carvão. Em julho, Biden viajará para a Arábia Saudita na esperança de um compromisso para que eles aumentem a extração de petróleo” (MishTalk).
“A inadimplência bateu novo recorde no país: em abril, 66.132.670 brasileiros estavam com o nome no vermelho … . Ao todo, eram R$ 271,6 bilhões em dívidas entre os inadimplentes” (g1).
“R$ 36,5 bilhões. É este o valor pago pelo Governo Federal nas cinco primeiras parcelas deste ano do Auxílio Brasil no país” (g1).
“Alguns analistas preveem que a economia dos EUA caminha para uma recessão. Mas, se for mesmo esse o caso, alguém esqueceu de avisar os consumidores. … O gasto no segundo trimestre está prestes a registrar crescimento de mais de 4%, o que o tornaria um dos melhores das últimas décadas. Como os consumidores gastaram mais ao mesmo tempo que ganhavam menos? A resposta é que eles começaram a gastar as economias” (Jason Furman, Valor).
Playlist Condizente — The Encharcado Mix — 2226
Numb — U2
“Gimme some more.”
A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa — Maria Bethânia
“Entre a escuridão e a claridade.”
1º de Julho — Legião Urbana
“Não basta o compromisso.”
Superstition — Stevie Wonder
“Superstition ain’t the way.”
Na série “Sonoras que Condensam a Vida”
“Seria uma insanidade, no mundo moderno, substituir os preceitos e a força da lei escrita pela presunção de bondade intrínseca de um grupo social ou de um agrupamento de indivíduos.”
Luiz Gonzaga Belluzzo, economista e professor da Unicamp; início de junho, por aí
Last but not least
O chato do Português
“Volks dá um gás no corte de emissões.”
Valor Econômico, em chamada de capa; início de junho, por aí